domingo, 5 de julho de 2009

Um pouco de clandestinidade

Fiquei muito assustada com o tom agressivo na voz do policial, mas não deixei de encará-lo firme, antes de tentar controlar a voz e pedir desculpas. Olhei a minha volta e percebi a quantidade de pessoas encrencadas com a documentação.

-Meu Deus o que estou fazendo aqui entre aventureiros e policiais trogloditas? Está tudo errado. Acreditei nas orientações do vice cônsul da Itália... disse-me por mais de uma vez que não haveria necessidade de visto de nenhuma natureza. E agora estou aqui confundida com clandestinos e ameaçada de prisão sem ao menos conseguir falar com seu Evandro e dona Giuliana. - Pedi insistemtemente aos policiais que avisassem aos meus amigos sobre a minha detenção na área internacional, mesmo não acreditando que o fizessem.
Não obstante a má vontade foram suficientemente claros quanto as condições de minha permanência, o que me deu a nítida impressão que de alguma forma estavam acreditando no que eu falei. Informaram-me detalhadamente sobre a necessidade dos meus amigos apresentarem uma declaração de responsabilidade da minha estadia registrada em cartório. Somente após essa formalidade eu poderia retirar o meu visto de turista. Por fim fui encaminhada para as proximidades da área de embarque. Caso não fossem cumpridas as determinações em 24 horas, eu teria que voltar ao Brasil.
Procurei imediatamente o posto telefônico do aeroporto e fiz uma ligação para o meu padrinho no Brasil, um dos reponsáveis pelas informações equivocadas do visto. Expliquei-lhe que estava na iminência de voltar para casa sem mesmo entrar na Itália. Tentou confortar-me dizendo que eu entraria no pais de qualquer modo, pois acionaria seus contatos na Itália e logo tudo estaria resolvido. Aproveitei para ligar para a casa do casal amigo informando as condições necessárias para o ingresso no País. Não quis falar com minha família para não provocar-lhes uma angústia impotente.
Não mais nada a fazer a não ser esperar pelos acontecimentos. Andei sem pressa e sem rumo pelo aeroporto que àquela altura parecia algo gigantesco. Só parei quando senti o cansaço nos pés e na coluna. Aos meus olhos ansiosos, o Fiumicino parecia que não tinha fim. Nem o volume de imigrantes dos países africanos e asiáticos eram suficientes para torná-lo menor. Olhava aquele povo todo e ficava mais inquieta e insegura. Uns pareciam eufóricos por terem chegado à terra prometida e mostravam-se confiantes e esperançosos . Outros pareciam tão desolados por estarem em país estrangeiro como a mendicar uma oportunidade.
É triste constatar como alguns brasileiros insistem em difundir a imagem de malandros e oportunistas. Enquanto eu observava as pessoas a minha volta. Um sujeito aproximou-se do banco onde eu estava sentada, com um andar cheio de balanço, todo de branco inclusive o sapato. Olhou-me nos olhos com um sorriso de conquistador barato e disse: - Oi broto! Estamos no mesmo barco, não é mesmo? - Ao ouvir o ostensivo sotaque carioca, Retruquei-lhe imediatamente: -Desculpe, senhor, mas não há nenhuma semelhança entre nós. Além do mais não tenho a menor possibilidade de conversa nesse momento. - Que é isso broto, não vá bancar a difícil. Mantive-me calada por intermináveis minutos até o sujeito entender a minha atitude. O que mais me chocou no episódio foi a falta de dignidade e o estereótipo de patife ligado ao homem brasileiro.

O Fiumicino

O aeroporto Fiumicino parecia não ter fim. Deveriam ser três horas da tarde quando o avião pousou. Eu não sabia com clareza as horas; tudo naquele dia parecia meio nebuloso, sonolento e duvidoso. Quando a fala da comissária italiana anunciou o pouso dei-me conta que a vida nova desejada iria agora começar para valer. Peguei a bolsa que estava no meu colo, olhei-me no espelho e dei-me conta da apreensão que me dominava.
O blazer marrom estava amarrotado depois, de onze horas de viagem do Rio de Janeiro a Roma. Resolvi trocá-lo por uma jaqueta jeans. A fumaça de cigarros presa no avião deixou-me com o rosto amassado de espirrar. Comparei-me com a vizinha de poltrona que havia descido em Milão e vi-me em franca desvantagem: a moça era o protótipo da elegância milanesa. Não havia dúvida que sua cashemere cor de rosa era legítima e o corte impecável da saia acompanhada de botas de pelica davam-lhe um refinamento e segurança que contrastava totalmente com a minha expressão insegura e desamparada.
Deixei que os outros passageiros descessem, enquanto rezei agradecida reacendendo a esperança que me movia em busca do desconhecido. Acredito que meu rosto era uma interrogação só. Segui atenta o movimento dos demais passageiros. Até chegar a imigração parecia que tudo seria muito simples. Sabia que meu italiano recente não me habilitaria a uma comunicação fluente, mas acreditava que me safaria de qualquer dificuldade.
Meus olhos eram insuficientes para captar todas as informações. Queria ler todos os letreiros e ouvir tudo a minha volta. Espantei-me quando chegou a minha vez de entregar a ficha preenchida e o passaporte para o funcionário. Congelei com o olhar desconfiado que ele me lançou. Parecia desacreditar que eu estaria ali como estudante, conforme afirmei. Fez as perguntas confirmando os dados do documento, procurei responder com segurança, mas acho que não convenci. Logo fui informada que precisaria confirmar com a policia do aeroporto o que havia dito. Assustei-me, pois havia percebido que todas as pessoas que eram encaminhadas à policia tinha um certo ar de tudo ou nada. Pareciam aventureiros em busca da última chance. Eu não tinha nada em comum com esse pessoal. Senti-me atingida por um soco quando na primeira pergunta do policial percebi a carga de sarcasmo, quando indagou sobre o que eu iria realmente fazer na Itália. Ao responder que iria estudar, ele demonstrou total incredulidade comecei a tremer os lábios. Já estava quase chorando quando alguém ordenou-me que mostrasse o dinheiro disponível para a minha manutenção. Desconfiada, mostrei-lhes, aproximadamente, um terço do que levara, o que agravaou mais ainda a situação. O policial, prontamente, retrucou que aquela quantia reafirmava a certeza que eu estava ali por outro motivo: trabalho clandestino. Obviamente, meu perfil de magreza e pele branca não lembrava as exuberantes brasileiras que invadiram o país para oferecer suas ousadias eróticas. Minha formação de pedagoga, acredito que me habilitaram a uma provável babá. Eu negava e insistia em explicar que seria recebida por um casal de amigos italianos que me dariam total apoio, com alimentação e moradia. O policial se convencia do contrário e reagia mais sarcático, sem perceber, comecei a falar agressivamente, e só calei quando ouvi a ameaça de prisão por desacato à autoridade. Entendi com clareza a ameça e contive-me já chorando... pensei magoada comigo mesma: -Então isso é chegar à Itália?!